O chocolate tem um movimento próprio, mas a constante procura por agregar valor ao produto final abriu um novo leque de oportunidades, o chocolate bean-to-bar. Principalmente em épocas em que a diferenciação e o encantamento é um ingrediente indispensável no nicho da gastronomia e hospitalidade em geral.
Da mesma maneira que encontramos pessoas apaixonadas e devotas ao mundo do café, encontramos outras aficionadas por chás, vinhos e chocolates.
Não é de hoje que o chocolate e o café formam uma dupla implacável. Essa harmônica união originou em uma das bebidas mais clássicas de cafeterias pelo mundo, o Mocha, que envolve a combinação de café espresso, leite vaporizado e chocolate, seja em forma de pó, barra ou calda.
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Para explicar exatamente o que são os chocolates bean-to-bar e o que representam, entrevistei a Juliana Aquino, chocolate maker e proprietária do Baianí Chocolates.
Juliana é uma pessoa que se mescla em qualquer multidão. Nascida em Salvador-BA, cresceu nas fazendas de cacau do sul da Bahia nos anos 60 e 70.
Ela seguiu carreira artística na música até o final dos anos 2000, quando começou a revisitar a Fazenda Santa Rita deixada pelo pai no município de Arataca, no Sul da Bahia.
Em decorrência da grande crise da vassoura-de-bruxa, doença fúngica que assolou a região de cacaueiros no final dos anos 80 e 90, e que até hoje assombra cacauicultores, a fazenda estava abandonada, precária, com riscos de ser perdida por dívidas irregulares nos bancos.

Ao tempo em que se formava em Gastronomia e investia pesado em seus sonhos, Juliana, e seu marido Tuta, fizeram ressurgir a fazenda de seu pai em 2013 com novos desafios e um novo nome: Origem de Cacau Especial Vale Putumujo.
Mas afinal,o que é Chocolate Bean-to-Bar?
Como o próprio termo sugere, bean-to-bar significa a produção do chocolate da semente do cacau até a barra, mas o conceito é muito mais amplo do que uma simples tradução literal. O processo bean-to-bar se caracteriza pela manipulação artesanal e pelo uso de matéria-prima pura e de extrema qualidade.
Juliana explica que chocolate bean-to-bar é uma nova interpretação para uma antiga paixão mundial, agora regada por modelos de negócios que envolvem sustentabilidade, qualidade sensorial e essência artesanal no processo de fabricação.
Segundo ela, a expressão foi criada por Robert Steinberg, um dos sócios da 1ª fábrica de chocolate bean-to-bar mundial sediada na baía de São Francisco, Califórnia, a Sharffen Berger. Robert estava cansado da experiência pasteurizada, sensorialmente padronizada e do chocolate comercial industrial.
Por essa razão, resolveu fazer seu próprio chocolate junto a John Scharffenberger, iniciando nos anos 90 um movimento que hoje se espalhou mundo afora com valores nobres de respeito ao processo técnico, meio ambiente e ao trabalhador.
Juliana sugere que a expressão bean-to-bar deva ser reproduzida em inglês mesmo, respeitando-se a originalidade da língua como forma a dar os crédito aos pioneiros do movimento.
O motivo que a fez mergulhar na pesquisa e no investimento em produção de chocolates a partir das amêndoas é poder comercializar o cacau especial até com valores que chegam a ser 400% superiores em relação ao preço de commodity. Pra nós do café, isso soa muito familiar, não é?
Um grande amigo, mentor e hoje nosso cliente americano, Greg D’Alesandre, pesquisador de origens de cacau para sua marca californiana Dandelion Chocolates, nos aconselhou a fazer o próprio chocolate para testar o progresso da qualidade das amêndoas.
Com esse toque, em pouco tempo entendemos que os testes de corte e/ou laboratoriais do cacau nunca iriam nos mostrar seus reais valores sensoriais e suas possibilidades no chocolate, então também nos apaixonamos pelo ofício. Com dois anos de testes, resolvemos lançar a marca Baianí Chocolates, que no primeiro mês de lançamento já ganhou dois prêmios internacionais. Hoje temos sete.

O que o Chocolate Bean-to-Bar representa para os negócios?
Para os negócios, o bean-to-bar representa um investimento novo, em um terreno nunca explorado antes, principalmente no Brasil, mas que tem um potencial gigantesco se levado com seriedade.
Assim como com o café especial, o Brasil é produtor de cacau especial. A troca entre os fabricantes de chocolate bean-to-bar e os cacauicultores dessa modalidade é enorme, direta e riquíssima. Com isso ambas as pontas ganham qualidade e aperfeiçoamento perene.
Juliana compara as relações da cadeia produtiva do café com a do cacau, apontando similaridades: o torrador de café pode pedir uma fermentação mais conduzida, mais longa e aberta para o produtor do café especial, assim como pedir uma secagem mais extensa, uma colheita mais nova ou madura.
Esse mesmo diálogo acontece entre o chocolateiro e o cacauicultor!
Isso pode fazer do Brasil um país de grande destaque na produção de chocolates especiais dentro de 5 anos, como está sendo com cafés especiais.
Eu acredito que a tendência mundial pela procura de alimentos não industriais, com ingredientes menos processados e ao alcance do público local, é irreversível. A saúde humana não aguenta mais as manobras utilizadas pela indústria para vender volume e tempo de prateleira, e cada vez mais produtores locais aparecem para suprir as demandas regionais.
O café especial mostra isso. As torrefações e cafeterias desse nicho se espalham a cada ano. Com o chocolate não seria diferente, assim como os queijos, azeites, especiarias, chás, etc., que seguem o mesmo caminho.
Juliana acredita que os empreendedores que entram para pegar a onda da modinha, não sobreviverão, e que somente restará quem entrar com o espírito coerente com o movimento e dedicado a causa.
Da mesma maneira que um coffeelover se apaixona pelas nuances do café especial, com o chocolate bean-to-bar não é diferente. “Quem curte um bom bean-to-bar, não voltará ao belga”, complementa Juliana.

Então, o que faz nos apaixonarmos pelo Chocolate Bean-to-Bar?
De fato, o cacau tem um composto que é o mesmo encontrado no hormônio liberado pelo corpo humano quando nos apaixonamos, a fenilatilamina. Essa pode ser uma das razões pelas quais nós do Baianí Chocolates amamos tanto nosso ofício.
Juliana acredita que a verdade colocada em todo o processo de cultivo do cacau especial e da fabricação do chocolate bean-to-bar é ainda mais sedutora do que esse composto.

“A gente se sente justo, amado, entregue e até vulnerável diante da beleza que é toda a cadeia produtiva desse chocolate”, afirma.
Não há como não se envolver de corpo e alma. É por isso que digo que o empreendedor de carona não tem chance. Se não se identifica, nem tente entrar. Só muito trabalho e dedicação dentro dessa verdade é que levam nosso negócio ao status que merece. Uma coisa sem a outra não é sustentável.
Essa onda é nova pra nós do café. Como e por que deveríamos aprender sobre ela?
Que pergunta bacana! Diria até humilde porque nós do cacau e chocolate especiais é que temos muito a aprender com o vocês do café especial que já estão há alguns anos à nossa frente.
Acredito que a paixão é a característica mais comum em ambos nichos. Então podemos explorar tanto de um lado como do outro, todas as formas de “tirar proveito” econômico dela, porém sem jamais destruí-la.
Com isso, Juliana sugere que comecemos a promover mais mesas redondas entre os dois nichos para melhorarmos cada vez mais quando tratarmos de planos de negócios.
Hoje as técnicas no cacau estão avançadas e, mesmo que não sejam as mesmas, pode-se pensar em uma infraestrutura de pesquisa mais próxima às características organolépticas do café.
A fermentação controlada do cacau especial, por exemplo, é um ponto que sinaliza a possibilidade de aprofundamento das iniciativas de fermentação do café. Juliana ainda questiona: Quem sabe fermentar os grãos juntos?
Outra coisa que conversa muito nos dois nichos é a condução do produto final: linguagem visual, embalagem, comercialização, pontos de venda, comunicação com o cliente. Podemos falar a mesma língua nesses diálogos, para conquistar certos direitos de diferenciação nesse sentido!
Podemos também planejar conquistas na legislação. O bean-to-bar, por exemplo, ainda tem que usar os mesmos termos do chocolate industrial em suas embalagens pelas leis da ANVISA.
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Como você vê a harmonização de chocolates com cafés?
A marca Baianí está lançando em dezembro a linha Cafés do Brasil. Fizemos inúmeras sessões de degustação com vários cafés especiais de três torrefações, para no fim escolhermos três produtores para usarmos em nossas barras de chocolate.
Não foi fácil concluir, mas as barras são completamente diferentes sensorialmente falando, tanto que as intensidades de cacau são distintas para encontrar o balanço perfeito entre um café específico e o chocolate Baianí.
São collabs, e todas as torrefações terão seus logotipos na frente das nossas barras.
Além da linha Cafés do Brasil, o Baianí Chocolates também está lançando uma barra 55% cacau e casca/polpa de café especial fermentado, cuja ideia veio do barista Rafael Bosco.
Vemos aqui como o profissionalismo do barista pode trazer a oportunidade de implementar o café em outros mercados “especiais”. O resultado, advindo de um processo de alto valor e dedicação das partes, traz inovação e um quesito surpresa que impressiona.
Não existe sabor de café, mas pra quem conhece a polpa e casca do café, sabe que aquela acidez cítrica deliciosa pode simplesmente “causar” numa barra de chocolate. E foi isso que aconteceu. São harmonizações de adultos! Acreditem…

E claro, as mesmas experiências podem ser tentadas “ao contrário”. Torrar e fazer o cupping do café já com o cacau inserido. O café e chocolate se namoram há longos anos! Mesmo nas versões mais populares. Quem nunca tomou um cafezinho, mesmo aquele requentado de padaria, com um quadradinho de chocolate no pires?
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Segundo Juliana, o barista tem a mesma sensibilidade sensorial do chocolate maker, ou pelo menos é o que se espera de ambas as profissões. O enriquecimento sensorial de qualquer profissional específico dentro da gastronomia depende imensamente da construção de repertório de sabores e aromas.
Independente se a pessoa permanece no café, no chocolate, no azeite ou no vinho, ela vai melhorar a cada dia, com consistência. Mas se você se envereda por outras experiências, com certeza vai ser o melhor.
Harmonização por Contraste ou Semelhança?
Amo harmonização por contraste! São as mais desafiadoras, mas as mais recompensadoras também, porém no chocolate com café acredito que apenas na forma líquida. Me refiro aos cafés especiais com Chocolate 70% derretido ou de infusão de nibs! Já na forma de barra de chocolate ou outros usos sólidos (granolas, farofas) somente por semelhança.
Atualmente evitamos classificar a origem de cacau como floral, terrosa ou frutada, pois a safra do ano pode mudar essa classificação num piscar de olhos. Então prefiro me referir a essa nuance falando e pensando em safras, tornando-se um mundo D-E-L-I-C-I-O-S-O e interminável de tentativas.
Como vemos, caro leitor, o mundo do chocolate e café estão muito próximos.
A preocupação com o terroir onde o cacau é colhido é a mesma no café, assim como nos chás, nas azeitonas para o azeite e nas uvas para o vinho. Detalhes que fazem a diferença no produto final, na composição química e carga sensorial, e que somente são levados em consideração no momento de agregarmos valor.
O chocolate maker age como torrefador e preparador, enquanto o barista age apenas como preparador, pois ele não produz e nem torra, mas ambos são responsáveis pela manipulação e pelo sensorial final.
O commodity se diferencia do especial nesse quesito, e cabe a nós, membros de mercados similares, valorizarmos a matéria-prima, os produtores, os torrefadores e os preparadores, pois cada um cumpre um propósito diferente, porém complementar.
Por fim, cabe ao barista, como profissional da entrega de experiências em café, aperfeiçoar-se em temas que moldem a preparação de bebidas únicas. Um deles é o chocolate, que, se bem preparado, misturado com café ou oferecido em harmonização, conquistará os paladares mais exigentes.
Essa nova onda está trazendo oportunidades de trabalho e negócios que vão muito além do que já conhecemos, e que pode nos ajudar a dar o próximo passo em nossas carreiras e fazer as pessoas mais felizes.
Veja a Juliana Aquino mostrando como funciona a fábrica de chocolate bean-to-bar na prática:

William Bryan é criador de experiências e formador de mestres na arte da extração de cafés. Advogado apaixonado pelo domínio das variáveis e pela masterização de técnicas avançadas.
http://www.cafeencanto.com.br/
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